Onde andará a Justiça?

            Diariamente a população percebe que alguma coisa está errada em algum lugar da vida. Esse sentimento de angústia que permeia o mês e o bolso, o frio na espinha quando percebe algo errado, faz desanimar o otimista ao ponto de ser perdida parte do tempo útil na busca de soluções. A troca do aparelho que veio com defeito, o acerto da conta de água que cobra muito mais que o realmente usado e tantas outras pequenas coisas, todas tomam tempo produtivo. Não deveriam existir, mas o brasileiro resigna-se e segue em frente, aguardando um novo dia para viver as mesmas tristezas, pagar os mesmos e caros impostos e rir da própria desgraça. Possível deixar esses pequenos problemas para depois? Não. São como moscas em cima do bolo: tocamos, abanamos, expulsamos aos gritos e elas estão ali o tempo todo, até que uma ou outra consegue sentar e lamber o glacê. Deixa alguma sujeira por lá, também. Pouco ligamos para a sujeira e, com o tempo, não ligamos também para as moscas.

            Essa sujeirinha que aparece na vida dos brasileiros muda a vida de muitos. E não há distinção: classes média e baixa são sempre as maiores perdedoras. E ainda perguntamos:

– É a burocracia? É o governo? É a falta de organização das pessoas? É a corrupção? É o salário pequeno? É o brasileiro que não tem respeito?

            Sim, talvez um pouco de cada. Porém, há outra, fundamental, que de tão desleixada, de tão usurpada, de tão corrompida, deixa a sociedade de joelhos sobre a sujeira e diante das moscas: a Justiça.

            Temos leis que, se aplicadas com rigor, tornariam a vida da população muito mais simples e produtiva. Temos o grande reparador de empresas e pessoas sem responsabilidade: o direito à indenização por danos morais. Todavia, tudo isso parece inútil, não funciona, não tem quem faça funcionar. O responsável não é o político, não é o padre ou o pastor, não é a fé, não é o vizinho nem a empregada, é o próprio brasileiro que começa a deixar correr o rio, mesmo que seja torto. Às vezes, seco.

            O tempo de duração de uma ação judicial chega às raias do absurdo. As decisões passam longe do que entendemos por justiça séria. Os juizes contemplam a condição social do ofendido na hora de estabelecer indenização, contrariamente à norma constitucional, e a empresa irresponsável fecha o caixa com grande lucro no final do ano lesando mais e mais pessoas. A lei diz que o valor da indenização deve servir para minorar a dor do ofendido e servir de freio para os irresponsáveis. É o que está escrito mas, qual juiz obedece? As leis são escritas de forma complicada para que o indivíduo médio não as entenda e, mesmo que tente cumpri-las compreendendo mal o que consegue ler, ficará com o receio de que fez algo errado,  tendo dívida eterna para com o Estado. Sua orelha está sempre na frente da pulga.

            Se vai a um órgão público é mal atendido, sua justa reivindicação é recebida como se fosse um favor prestado por quem deveria receber o contribuinte com tapete vermelho. E, para piorar, ao final do dia, volta para casa com a sensação de que nada vai mudar. Alguns dizem que retornam com a sensação de dever cumprido. Vassalos. Então pergunto: que dever, cara pálida? O dever de ser um completo idiota perante os que zombam de tudo e todos com o beneplácito das autoridades? Pergunto novamente: Que autoridades, cara pálida? Aquelas que são punidas quando cumprem a lei? Estamos protogeneizando demais?

            Mas um dia, alguém toma uma decisão e resolve mudar de vida. Decide que transgredir é a norma que tem sentido e respeito. Entende que valores como honestidade, honra, moral e fidelidade são coisas sem qualquer sentido real. Qualquer coisa vale para se livrar de um problema menor, para enriquecer às custas do sofrimento alheio. O sofredor que se dane! E qualquer coisa é possível quando não há punição. É o garoto que pode andar com uma automática e matar um chefe de família, enquanto aquele que mora em lugar ermo não pode ter uma arma para sua defesa. O crime é poder se defender à altura. É o ‘dotô’ de colarinho branco que pode corromper qualquer um e passar as férias numa ilha grega qualquer, mas o crime é furtar um pote de margarina. Tudo vale, tudo pode, tudo está certo porque, no final das contas, ninguém vai preso, ninguém tem medo do lobo mau. É melhor um garoto na rua do que ‘forçado a trabalhar’ e aprender um ofício; é melhor uma menina se prostituir do que trabalhar de doméstica; é melhor um jovem espancar um professor do que ser disciplinado. É melhor prender quem reclama com razão, senão, qualquer dia desses alguém pode ouvi-lo. Esse é o país que temos. Este é o país que estamos destruindo para os nossos descendentes.

            E é exatamente neste ponto, no momento quando o mal é bem e o bom é mau que aparece o ‘jeitinho brasileiro’, a lei de Gerson, o favor impagável, a corrupção. Esta sim, a dificuldade imoral que faz vender a facilidade de algo gratuito. É esta que já destruiu reinos e impérios e, aos poucos, segue destruindo nossas famílias, nossos amigos, nossos governantes, nosso país, nosso futuro.

            Sem respaldo no que lhe é de direito, o direito que está escrito na lei do seu país, o brasileiro desiste do que é reto, abandona o que é honesto e sente vergonha de ser honrado. Para que estudar se não é preciso nem diploma para ser Presidente da República? Tal atitude tem reflexos em toda a sociedade, cada um sente um pouco do erro de cada outro e, por conseqüência; multiplica-o por não haver Justiça. Notaram que até agora não usei a palavra cidadão? Não usei porque não existe. Por todos os empecilhos que o Estado gera para atrapalhar as liberdades civis enquanto alguns, mais iguais que todos os outros, continuam a nadar no resultado do suor de cada ser menos igual, o brasileiro só se sente cidadão quando transgride. Mas tem o lado ruim: é uma constatação que pode ser alterada somente através das nossas atitudes.

            Não são os valores que estão em falta, são as pessoas de valor que estão caladas. E você?